terça-feira, 6 de novembro de 2012

Dan Wells em Portugal

O autor Dan Wells estará em Portugal neste mês de novembro para participar no Forum Fantástico 2012, que se realiza de 23 a 25 de Novembro, na Biblioteca Municipal Orlando Ribeiro, em Lisboa. O autor de Não Sou Um Serial Killer, irá lançar em exclusivo no Fórum Fantástico 2012, a tradução em português do segundo volume, intitulado Senhor Monstro. Para saber mais, poderá visitar a página do evento em http://forumfantastico.wordpress.com/


Crítica de Leitor: «O Mundo Depois do Fim»


«Um livro desigual e com uma abordagem surpreendente sobre o começo depois do fim, é o que nos trás a recente aposta de Tom Perrotta em terras lusas. Perfeito para quem gosta de ler entrelinhas, esta obra proporciona abordagens variadas a questões tão proeminentes e actuais como a família, religião e emoções diversas através da análise de reacções de um grupo de indivíduos que assistiu ao Arrebatamento.

E de repente, entre a batida de um coração, foram tantos os que deixaram de viver como aqueles que passaram apenas a sobreviver. Não se sabe se foi o fim ou se foi o início de algo. Sabe-se que a mágoa e a ausência de respostas mudaram tudo e todos. Sabe-se que aconteceu a alguém, a um conhecido ou familiar de alguém e que, se se procurar, existirá mesmo um alguém para recordar. Foi apocalíptico e não poupo ninguém.

Kevin não perdeu nenhum familiar mas, como muitos outros, o presidente da câmara colhe os cacos dos muitos cidadãos de Mapleton e sofre com as consequências do desaparecimento de outros enquanto tenta, desesperadamente, manter nos que ficaram aquilo que todos parecem ter perdido, a esperança.
Laurie, a esposa de Kevin, não perdeu os seus mas sente que perdeu tudo, a sua melhor amiga é a imagem de alguém perdido e, face à impotência, também ela terá de procurar algo antes que se perca também.
Tom, o filho de Kevin, sente-se a enlouquecer com o desespero alheio. O começo da universidade não deveria ser assim e uma pausa nos estudos parece a solução acertada quando alguém aparece e apregoa ser capaz de lhe retirar a tristeza que lentamente se aconchega dentro de si.
Jill, a filha adolescente de Kevin, não percebe porque é que os que ficaram têm de se deixar levar na onda de desânimo, ela só quer uma juventude normal mas esse conceito, como muito outros, desapareceu com todas as almas levadas pelo dia fatídico.

Não vos vou mentir, dizer-vos que foi para mim uma tarefa titânica escrever parcas linhas sobre esta história é, literalmente, um eufemismo. Como leitora e curiosa sou, fui automaticamente cativada pela sinopse desta obra mas, desconhecendo totalmente o trabalho deste autor, nada me poderia ter preparado para a sua abordagem, para sua escrita, relativa a temas tão actuais como aqueles que apresenta.

Trabalhando particularmente o lado emocional das personagens, Tom Perrotta apresenta-nos uma temática que tanto tem dado que falar este ano 2012, um ano que muitas crenças acreditam ser o último. Tendo vista o este estranho acontecimento, o autor pressupõe a existência de um Arrebatamento que faz desaparecer milhões de vidas deixando-nos uma reflexão singular e pormenorizada de como todos aqueles que por cá ficaram reagem aos desaparecimentos e, fundamentalmente, aos efeitos sociais de um acontecimento com estas proporções.

A família está na primeira linha de reflexão quanto às ressonâncias de tal acontecimento e Kevin, o protagonista, tendo em conta que ninguém da sua família desapareceu, é o exemplo perfeito para obtermos uma visão externa deste evento catastrófico. A forma como reflecte e como tudo na sua vida se altera, mesmo sendo um privilegiado, é muito interessante e, dado que a sua família é bastante dinâmica, permite que o leitor tenha várias perspectivas dos sentimentos deixados por este desastre.

Outro dos factores que é fortemente esmiuçado é a religião e neste ponto o autor criou diversas ceitas interessantes que visão satirizar a necessidade que o ser humano tem de se agarrar a algo superior sempre que se encontra em situações extremas. Os Remanescentes Culpados, uma das ceitas imaginadas, são fascinantes pelo impacto que têm em todos os intervenientes com as suas características peculiares, no entanto, tal como em quase tudo, quanto melhor vamos conhecemos esta vertente religiosa, mais nos vamos surpreendendo pelo seu lado obscuro que certamente não deixará nenhum leitor indiferente.

Em suma, uma temática interessante sob o traço de um autor inteligente que soube efectuar uma abordagem pouco convencional, pouco comercial, mas, ainda assim, direccionada para o entretenimento na mesma medida em que nos faz repensar o lado psicológico de cada um.

Tom Perrotta tem uma escrita bonita assertiva para um público que gosta de narrativas descritivas dando, em particular, primazia à introspecção.

Eu pessoalmente considerei a leitura agradável embora não tenha criado afinidade com qualquer uma das personagens. Senti-me, no entanto, impulsionada para descobrir os rumos que foram sendo criados para os diversos intervenientes que no fim me deixaram a reflectir sobre as suas acções, tanto quanto o conseguiram durante os desenvolvimentos do texto.

Esta obra é uma aposta Contraponto que, como já vem sendo usual, investe fortemente em leituras diferentes que de uma forma ou de oura marcam os leitores. Uma leitura que sugiro aos leitores de ficção em geral e, em particular, ao que gostam de temáticas apocalípticas.»
As Histórias de Elphaba


quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Imprensa: «O Lar da Senhora Peregrine para Crianças Peculiares»

«O livro perfeito para o Halloween começa com fotos encontradas em feiras, erros nos rolos fotográficos e um orfanato no País de Gales. O escritor Ransom Riggs trocou as biografias pelos romances arrepiantes. O segundo está a caminho e o primeiro até vai ser adaptado ao cinema por Tim Burton

O escritor francês Honoré de Balzac odiava fotografias, aliás, temia-as. Para ele, essas reproduções eram pequenos assaltos à alma. No século xix usavam-se os daguerreótipos, um processo fotográfico sem um negativo e, a cada imagem que saía, Balzac acreditava que desaparecia com ela uma camada da alma. Se o processo se repetisse várias vezes, o resultado seria horrível. Como se isto não bastasse, a cada erro de sobreposição, excesso de luz ou falta dela, começavam a emergir nas fotografias familiares espectros de outras pessoas, vestígios de cães ou de garrafas. Numa época em que o espiritismo era a corrente new age do momento, as fotografias ganharam um novo significado. De certeza que já terá feito a experiência de observar um retrato a preto-e-branco do bisavô ou do trisavô que parece segui--lo por toda a sala. Agora imagine transformar isso num hobby. E que esse hobby acaba com um contrato para ver a sua história – “O Lar da Senhora Peregrine para Crianças Peculiares” – adaptada ao cinema por Tim Burton. Mas comecemos pelo início.
Todos os domingos, o americano Ransom Riggs, de 33 anos, perdia horas a percorrer caixas de plástico repletas de fotografias antigas nas feiras de rua. Rasgadas, desfocadas, com dedicatórias, sobre- posições de imagens ou mesmo com montagens grosseiras. Ransom foi acumulando tantas caixas que o hobby se transformou em obsessão. A seguir os vendedores começaram a guardar-lhe as mais peculiares: uma criança dos anos 20 que parece levitar a uns centímetros do chão com uma cara assustadora, uma rapariga presa dentro de uma garrafa, outra que descasca batatas e escreve no rodapé da fotografia – “A descascar batatas e a pensar em ti. Volta depressa, com amor, a tua batata”. Há de tudo. Até um homem deitado num sofá com uma arma na mão e olhos reluzentes. Agora o escritor já nem visita as feiras porque a colecção é tão grande que só compra fotos novas quando certos vendedores lhe telefonam.
A maioria das pessoas fugiria dessas imagens, ou se resistisse a esse primeiro impulso provavelmente ia tentar investigar quem são aquelas caras. Ransom Riggs teve outra ideia: criou um romance sobre uma ilha misteriosa, um orfanato abandonado e crianças com poderes especiais, como flutuar ou começar incêndios. “Não tinha a certeza do que fazer com a minha colecção. Levei ao meu editor as fotografias e foi ele que sugeriu que criasse uma narrativa à volta delas. Nunca tinha escrito um romance, acho que se ele não me tivesse aconselhado não teria coragem”, diz ao i Ransom, que antes tinha lançado “13 Photographs that Changed the World” e “Sherlock Holmes Handbook”. As fotografias não podiam conduzir a um caminho que não um romance arrepiante. Acompanhamos Jacob, de 16 anos, que depois de uma tragédia familiar acaba no País de Gales onde encontra as ruínas do lar da Sr.a Peregrine. As estranhas crianças foram fechadas naquele orfanato porque eram perigosas. E paira no ar a hipótese de que ainda estejam vivas. Criancinhas com poderes, todos sabemos, são das coisas mais assustadoras que pode haver.
A fotografia que inspirou Ransom é a de uma mulher de mãos dadas com um rapaz a andar em direcção a um túnel de luz – “é a que resume a história para mim”. Quanto à mais assustadora, o autor confessa ao i: “É difícil escolher, mas fico sempre arrepiado ao olhar para uma que mostra dois rapazes mascarados, de cara coberta, que estão a dar de comer um ao outro o que parece ser uma serpentina.”
Para escolher as imagens que vemos no livro, Ransom pesquisou centenas de imagens, todas de desconhecidos. Mas o interesse pela fotografia surgiu quando era miúdo. Aliás, mais ou menos na mesma altura em que pensou ser agricultor – cresceu numa quinta na Florida. Entretanto esse sonho desapareceu mas a fotografia manteve-se desde o Natal em que recebeu uma 35 mm.
Sem esse hobby, Ransom Riggs, que estudou Literatura Inglesa no Kenyon College, não teria um bestseller do “New York Times” a chegar agora a Portugal, naquela que é uma bela proposta para o último Halloween antes de um feriado que teremos (em 2013, 1 de Novembro será dia útil). Mas o autor defende que o livro é muito mais que uma série de histórias aterradoras. “Na verdade nunca gostei muito do Halloween. Nunca gostei daquela coisa de nos mascararmos. Acho que o livro é mais sobre a demanda deste rapaz, os aspectos assustadores marcam o tom da história mas não são o principal. Não é um livro de terror, é uma aventura.”
Quanto a novidades, o segundo volume já está a ser escrito e “O Lar da Senhora Peregrine para Crianças Peculiares” será adaptado por Tim Burton. “Tenho óptimos agentes. Tudo o que sei é que o livro chegou às mãos certas e as pessoas gostaram. Mas ainda não há datas.”»
Vanda Marques, i Online

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Crítica de leitor: «O Lar da Senhora Peregrine para Crianças Peculiares»


«Quando Jacob era pequeno, o avô contava-lhe histórias de uma vida peculiar, em que a necessidade de fugir dos monstros o levara a uma ilha encantada onde todas as crianças tinham poderes especiais. Depois, os pais contaram-lhe que os monstros de que o avô fugira eram os nazis e as histórias impossíveis apagaram-se-lhe da mente, à medida que se adaptava à vida na realidade. Mas, agora, aos quinze anos, Jacob encontra-se face a um acontecimento inegável. Ou não? O avô acaba de morrer e Jacob jura que viu um monstro no momento em que o encontrou, mas todos fazem o possível para o convencer que foi uma visão causada pelo choque e que a morte se deveu a um ataque, sim, mas de animais selvagens. Jacob deixa-se convencer, mas, de noite, os sonhos perseguem-no com imagens sombrias do monstro que viu. E, finalmente, consegue convencer os pais e o psiquiatra de que visitar a ilha onde o avô terá vivido, seguindo, sem que mais ninguém saiba, as suas últimas palavras, lhe dará a paz - e as respostas - de que precisa. Mas talvez não as que espera...
Das muitas coisas boas que há para descobrir neste livro, a que primeiro chama a atenção diz respeito ao aspecto visual. Há uma relação entre a história e as muitas fotografias antigas que são apresentadas ao longo do livro, e esta conjugação resulta numa edição bonita, de aspecto apelativo e que encaixa na perfeição no ambiente sombrio que transparece ao longo de toda a história.
Outro dos pontos fortes é precisamente esse ambiente sombrio, com toda a aura de mistério a ele associada. A história é narrada do ponto de vista de Jacob, que, no ponto de partida da história, não sabe mais do mundo em que se está a envolver do que as histórias que o avô lhe contou - e que julga falsas. Isto permite criar uma percepção das coisas semelhante à de quem vê algo pela primeira vez e, associado às circunstâncias complicadas de Jacob (com um conhecimento de algo em que nem ele realmente acredita), torna maior o impacto de cada uma das revelações, mesmo das mais simples. Além disso, o cenário é, mesmo sem ter em conta a parte "peculiar" do enredo, relativamente sombrio, e isto aplica-se tanto aos lugares (com particular destaque para a ilha e para o estado em que Jacob encontra a casa), como ao contexto familiar, em que as pequenas coisas que perturbam o protagonista revelam um certo sentido de inadaptação.
No que diz respeito à história, é possível considerar duas fases, ambas cativantes e com momentos intensos, mas com um ambiente algo diferente. Até à descoberta do segredo da casa arruinada, a história centra-se em Jacob, sozinho e algo perturbado, tanto pelo que viu como pelo que julga ser a sua posição na vida. Enquanto adolescente, Jacob tem as suas tribulações naturais, mas que se atenuam ante a necessidade de descobrir, de alguma forma - de qualquer forma - o segredo do avô. Nesta fase, pois, o que mais sobressai é uma certa melancolia face a um mistério para desvendar sozinho, bem como, obviamente, as primeiras características do mistério que se vai revelando.
Depois, começam a surgir as respostas e o ritmo da história torna-se bem mais intenso. Primeiro, surgem as explicações para o muito que Jacob não compreende, mas, ao dar forma à história das crianças peculiares, o autor apresenta personagens novas, situações divertidas e um sentimento de pertença que muda a perspectiva do protagonista perante o que está a acontecer. Depois, surgem os perigos, que vêm revelar um pouco mais de um sistema que tem muito de interessante e a partir do qual, ainda que várias perguntas fiquem ainda sem respostas, se cria um enredo cativante e cheio de surpresas.
Há também um pouco de romance e, como quase tudo neste livro, também este tem o seu quê de peculiar. Uma parte considerável do enredo envolve alguma interferência com as linhas temporais e isto leva ao contacto entre figuras de tempos diferentes, mas, possivelmente, com ligações comuns. Há, por isso, uma certa estranheza no discreto romance vivido por Jacob, mas a forma como este evolui acaba por se adequar ao ambiente geral da história.
Mais misterioso que propriamente assustador, este é um livro que cativa pela forma como conjuga fascínio e estranheza, numa história envolvente e cheia de surpresas, com personagens cativantes e uma conclusão que, abrindo muitas possibilidades para o que virá a seguir, apresenta, também, muitas respostas interessantes. Mágico, sombrio e um pouco surreal... e, em tudo isto, muito bom.»
As Leituras do Corvo


Imprensa: «Fun Home»


«Há vida na natureza morta.

É um livro de memórias, é uma autobiografia, é uma biografia do pai da autora, é a história da complexa relação entre dois. É tudo isso.


Normalmente associa-se a BD, particularmente a norte-americana, a fantasias masculinas de violência, em que impera a figura de vigilante (pense-se em Super-Homem, Batman ou outros super-heróis) ou então uma coligação de seres mais ou menos humanos prontos a salvar a Humanidade (por exemplo, os mutantes de X-Men); aos músculos tensos dos homens e aos contornos voluptuosos das mulheres a rebentar com os quadradrinhos (cada vez menos convencionais) que se enchem de onomatopeias e frases cortantes; a vilões com planos mirabolantes, mais ou menos sanguinários; a uma acção frenética, cavalgante, explosiva. Mesmo os que procuram o negrume - como Frank Miller e Alan Moore, autores de novelas gráficas conceituadíssimas - trabalham a partir desta fórmula. Claro que esta será apenas a face mais visível da nona arte, que não se reduz a ela — as tiras de Calvin & Hobbes ou os Peanuts bastariam para demonstrá-lo. Ainda assim, para leitores menos conhecedores das vertentes mais alternativas da BD, Fun Home

- Uma Tragicomédia Familiar não deixará de causar estranheza. É um livro de memórias (chamaram-lhe graphic memoirs em contraponto a graphic novel)? Ou antes uma auto-biografia de Alison Bechdel? Ou ainda uma biografia de Bruce Bechdel, pai da autora? Ou outrossim a história da complexa relação entre dois? Esta banda desenhada consegue ser tudo ao mesmo tempo.
Dá ideia que a matéria de Fun Home (o título é referente à casa funerária de que a família Bechdel vivia mas também à “casa de bonecas”, reconstruída por Bruce, em que vivia, qual delas a menos divertida) pedia uma “arte maior”, a seriedade da literatura. No entanto, raros são os romances em que se encontram esta preciosa construção de “personagens” (é a própria autora que escreve que para si os seus pais “só são reais em termos ficcionais”), esta análise obsessiva-compulsiva (padecimento de que parecem sofrer as duas personagens principais do livro) ao mínimo detalhe, esta compreensão do labirinto que é a alma humana. De qualquer maneira é na banda-desenhada que Alison Bechdel encontra a melhor forma para contar esta(s) história(s): embora a palavra e a literatura tenham um peso enorme — a discussão literária é a única maneira que pai e filha encontram para comunicarem; os pensamentos da autora tecem-se sobretudo através de analogias e comparações às obras e vidas de grandes autores como F. Scott Fitzgerald, James Joyce, Marcel Proust, e Oscar Wilde —, as sensações de perda, de estagnação de tempo (as vinhetas servem para conservar o passado - Bechdel desenhou-as a partir de fotografias em que interpreta as “personagens” de situações da sua juventude), a artificialidade da natureza morta que é aquela vida são transmitidas pela imagem (e é pena que, na versão portuguesa, se percam aqueles tons verdes que tingiam os quadrados originais e lhes davam a aura de nefasta nostalgia que combina tão bem com o que é retratado; aliás, um dos poucos reparos que se podem apontar a esta edição).
Em sete capítulos, Alison Bechdel aproxima-se progressivamente do mistério que é o seu pai. No entanto, a cada novo dado, quanto mais perto do objecto, a imagem vai ficando mais desfocada: primeiro, Bruce aparenta ser apenas um pai severo e irascível, que ama mais os objectos do que os filhos e é muito pouco afectuoso; depois vai-se revelando uma espécie muito particular de self-made man - um intelectual auto-didacta, um homem de gostos requintados, um esteta (um Gatsby dos pobres) -, um homossexual reprimido com predilecção por mancebos, alguém que falhou por completo a sua existência, que preferiu ficar numa cidade pequena (ou melhor, num círculo que se desenha nos pontos onde nasceu, cresceu, viveu e morreu) onde teve de esconder quem era a viver numa grande capital onde poderia ter agido de acordo com os seus desejos, que, por fim, se deixa morrer num acidente estúpido com um camião do pão (e há uma imagem especialmente dolorosa que o mostra são e salvo; mas, nestes “o-que-poderia-ter-sido”, Bechdel coloca e bem a possibilidade de que se o pai não tivesse morrido naquela altura pudesse ter vindo a ser mais uma vítima da SIDA). Mas o que é verdadeiramente espantoso é que Bechdel acaba por expor tanto de si (a um nível quase doentio) quanto do seu pai, o que se percebe já que formou a personalidade por oposição à dele (a masculinidade como resposta à feminidade), e quando conta a história dele, não podia deixar de contar a sua.
Apesar de tudo, algo os une: a homossexualidade. Alison chega a desejar que a revelação de que era lésbica tenha levado o pai ao suicídio (ela não acredita na hipótese do acidente), pois é a única ligação que resta, mesmo que póstuma. “Creio que te vais sair melhor do que eu”, escreveu-lhe o pai numa carta (sempre a palavra escrita). Se assim foi, tal deveu-se à necessidade dela de evitar os erros dele. Fun Home funciona também como exorcismo. Que ainda não terá acabado. No livro, a mãe, uma actriz meio frustrada, fria e distante, também não fica bem nos quadradinhos. Num género de sequela (em mais do que um sentido), Alison Bechdel dedica-lhe o recente Are You My Mother?, ainda não editado em Portugal.»
João Lameira, Ípsilon, Público




quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Crítica de Leitor: «O Mundo Depois do Fim»


«Segundo algumas profecias, quando se aproximar o fim dos tempos, chegará uma altura em que os bons serão arrebatados para os céus, deixando aos impuros e aos pecadores a tarefa de suportar o Apocalipse  Mas como reagiriam as pessoas se o Arrebatamento realmente acontecesse? Pois é isso que sucede neste livro. Subitamente, um número considerável de pessoas desapareceu e, enquanto alguns o interpretaram como um sinal da iminência do fim do mundo, outros fizeram todos os esforços para provar que o fenómeno se devera a qualquer outra razão. Qualquer outra situação, mas nunca o Arrebatamento. E é no cenário de um mundo a tentar lidar com o que aconteceu que Kevin Garvey e a sua família são apresentados. Laurie, a esposa, juntou-se aos Remanescentes Culpados, fez um voto de silêncio e aceitou viver para lembrar à população a iminência do julgamento de Deus. Tom, um dos filhos, juntou-se a um culto cujo líder deixou que a fama lhe subisse à cabeça. Jill tomou para si todas as formas de rebelião como forma de lidar com o desaparecimento de uma amiga, mas, principalmente, com o abandono da mãe. E Kevin tenta reconstruir a sua vida naquele mundo diferente, procurando uma nova relação na figura da mulher que tudo perdeu com o Arrebatamento. Passaram três anos desde o estranho fenómeno... mas as mudanças nas suas vidas mal acabam de começar...
Basta a premissa na base da história para despertar a curiosidade relativamente a este livro. Há, no conceito do Arrebatamento, várias possibilidades e questões interessantes (partindo, desde logo, de como seriam escolhidos os que vão e os que ficam, mas também como ocorreria o fenómeno) e o autor aborda-a de forma brilhante. A situação é apresentada como um acontecimento a nível global, mas o leitor vê-a do ponto de vista dos Garvey e, inicialmente, de Laurie, que costumava ser uma céptica. A sua mudança é, pois, a maior e as possíveis razões criam uma cativante aura de mistério em torno dos Remanescentes Culpados. Além disso, ao acompanhar Laurie e a família cria-se uma proximidade com as personagens, conferindo-lhes um lado pessoal e evocando algo de empatia, o que cria um equilíbrio emocional muito bem conseguido. O Arrebatamento levou muitos e muitos dos que ficaram o sentiram, mas ver as emoções e as consequências do sucedido nos protagonistas torna mais clara a consciência desse impacto a nível emocional.
Mas nem tudo é pessoal e há, no que é vivido pelos Garvey, um reflexo do impacto global das circunstâncias e das formas mais ou menos irracionais de reacção por parte dos que ficaram. Mais uma vez, isto reflecte-se de forma particularmente clara na construção em torno dos Remanescentes Culpados, partindo de acções que passam de simples comportamentos invulgares a algo de bastante mais complexo. Mas há mais, e isso é tão evidente em modos de vida mais ou menos organizados (como o culto do Santo Wayne ou as Pessoas Descalças) como na forma como as pessoas menos apegadas a esse tipo de mudanças encaram o novo mundo. A história de Nora, com a solidão e as marcas deixadas pela perda, tem tanto ou mais impacto que o grande plano dos Remanescentes Culpados. O resultado é uma história rica, em que cada personagem representa uma reacção diferente aos factores de mudança e, de certa forma, algo maior que as suas histórias pessoais (que têm, por si só, muito de interessante).
Há, ao longo do livro, muito sobre que reflectir e a forma como o autor equilibra essas considerações  sobre crenças, mudanças e formas de estar perante a vida com um enredo envolvente, em que os acontecimentos falam mais que as palavras, é grande parte do fascínio deste livro. A isto, junte-se uma escrita fluída e o toque perfeito de humor e o resultado é uma leitura viciante, quase compulsiva. Mas há ainda um outro aspecto a referir. Se, em certa medida, os percursos das personagens se encerram num ponto de viragem, também é certo que nenhum deles é o esperado e, nalguns casos, está longe de ser uma conclusão definitiva. Isto leva a que fiquem algumas perguntas sem resposta, mas acaba também por ser o final mais adequado, pois, tal como o Arrebatamento podia ser, ou não, o prelúdio para o Apocalipse  também a mudança de rumo na vida das personagens poderá ser definitiva... ou não.
De leitura viciante e com o melhor dos equilíbrios entre a história pessoal das personagens e a perspectiva global do que está a acontecer, esta é uma história que cativa tanto pela abordagem surpreendente ao sempre interessante tema do fim dos tempos como, e principalmente, pelo impacto da história vivida pelos seus protagonistas. Fica, pois, deste O Mundo Depois do Fim, a melhor das impressões. Recomendo.»
Leituras do Corvo



quarta-feira, 3 de outubro de 2012

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Crítica: «Fun Home»


«Publicada em 2006, após sete anos de um minucioso trabalho de escrita e ilustração, a «tragicomédia familiar» de Alison Bechdel integra-se num subgénero das novelas gráficas: o que faz da autobiografia um exercício de investigação sobre o lugar do autor no mundo. Exemplos maiores são o monumental Blankets, de Craig Thompson (Biblioteca de Alice, 2011), e Persépolis, a obra-prima de Marjane Satrapi (Contraponto, 2012). Em qualquer destes casos, o relato da própria vida e das suas incidências, muito focadas na transição problemática para a idade adulta, permitia uma visão panorâmica de realidades sociais concretas. Thompson mergulha-nos na asfixiante atmosfera religiosa da América profunda (Wisconsin), difícil para um adolescente em crise de fé; enquanto Satrapi traça um memorável fresco da sociedade iraniana na década de 80, quando o fundamentalismo islâmico instaurou a sua lei (posta em causa pela rebeldia da jovem Marjane, num registo que oscila entre o humor corrosivo e a denúncia crua dos factos). Ao narrarem os seus processos de crescimento e libertação, tanto Thompson como Satrapi descrevem um movimento centrífugo (Craig perde o primeiro amor e sai de casa dos pais; Marjane instala-se na Europa, falha a adaptação, regressa à pátria, desilude-se, e parte de vez para França). Pelo contrário, o movimento descrito por Alison Bechdel em Fun Home é centrípeto, virado para dentro, fixando-se na procura de um sentido para a relação complexa entre a autora e o pai.
A cena inicial determina desde logo os termos desta relação. Deitado num tapete da sala, Bruce Bechdel sustém o peso da filha pequena com os pés, uma acrobacia a que se convencionou chamar «jogos de Ícaro». Ao equilíbrio precário e desconfortável, Alison contrapõe a alegria pelo «raro contacto físico» e estabelece a primeira de muitas inversões simbólicas que atravessam o livro: ao replicarem o mito de Dédalo e Ícaro, «não fui eu mas sim o meu pai quem se despenhou do céu». Esta queda consubstancia-se num acontecimento trágico: a morte de Bruce, atropelado por um camião. Sem ter elementos que o provem, Alison suspeita de suicídio. Havia duas semanas que a mãe lhe pedira o divórcio. E meses antes fora ela a fazer o coming out, anunciando por carta a sua homossexualidade. Um anúncio ofuscado pela revelação de que o pai sempre fora gay, mantendo relações secretas com alunos e outros rapazes. Enquanto ela afirma a sua identidade, mesmo antes de experimentar o sexo com mulheres, Bruce mostra-se incapaz de sair do armário – e Alison vê na tensão entre estas duas atitudes, tão díspares, um gatilho possível para o gesto fatal.
De certa forma, é em volta deste nó, desta dúvida, que o livro se organiza. Tanto a mãe como os irmãos ficam em segundo plano, são figuras apagadas, difusas, dando todo o espaço a Bruce e às suas idiossincrasias. Professor de inglês que herda uma agência funerária, obcecado pela decoração da casa vitoriana, ele cultiva uma «fria distância estética» que o desliga emocionalmente da família («tratava os móveis como se fossem filhos, e os filhos como se fossem móveis»), passando o tempo a ler, tal como Alison. É aliás nesse território comum, o da leitura, que a verdadeira comunicação entre os dois se dá, quer pela troca directa de livros, forma de expressar o que nos diálogos fica só implícito, quer pelo recurso a elaboradas referências literárias (Camus, Wallace Stevens, Proust, Scott Fitzgerald ou Joyce) que se entranham na estrutura do relato, iluminando-o.
Bechdel consegue uma coisa rara: o equilíbrio perfeito entre o texto – poderoso, de grande força evocativa, embora por vezes demasiado denso – e um trabalho gráfico que parece linear, mas na verdade é bastante complexo (repare-se na atenção maníaca aos detalhes, nos muitos planos que cabem numa mesma prancha, na integração orgânica de elementos reais: mapas, diários, fotografias). Sendo excelente o trabalho do tradutor, lamenta-se apenas que a aguada verde-cinza do original, com a sua «qualidade sombria e elegíaca» (nas palavras da autora), se tenha perdido pelo caminho.»
Bibliotecário de Babel



terça-feira, 4 de setembro de 2012

Regresso à normalidade... ou não!

Depois de umas férias bem merecidas, regressamos todos, editores e leitores, os primeiros para lançarem novos livros e os segundos para descobrirem novas leituras. Eis as novidades que vos apresentamos este mês, porque o verão ainda não acabou! Espreitar por aqui.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Crítica de Leitor: «A Ilha»

«Quando a filha a encarrega de todos os detalhes do seu casamento, Birdie sente-se honrada e lança-se, de corpo e alma, à tarefa. Mas eis que tudo muda quando, já noite avançada, Chess lhe telefona a anunciar que acabou tudo e que não pode casar com o noivo. Evidentemente perturbada, mas determinada a não dar explicações, Chess muda, por completo, a sua vida. Primeiro, cancela o casamento. Depois, desiste do emprego. As razões, só ela as sabe, mas também os seus planos são arruinados com a morte do seu ex-noivo num acidente. Então, a culpa sobrepõe-se a tudo e a proposta de Birdie de algumas semanas de retiro na casa de Tuckernuck passa a parecer uma forma de reconfortar Chess nas suas dificuldades. Juntam-se, assim, quatro mulheres - Birdie, a irmã e as duas filhas - na velha casa de Tuckernuck, em busca de alguns dias de tranquilidade. Mas todas encontrarão algo mais...

Apesar de ser apresentada como uma leitura de praia, esta não é uma história tão leve quanto seria de esperar. Primeiro, devido ao ritmo relativamente pausado a que os acontecimentos decorrem, principalmente na fase inicial, em que as personagens são ainda pouco familiares e parece haver uma extensa caracterização para assimilar acerca do passado e do estilo de vida das personagens, mas também pela considerável medida de drama e de mistério que caracteriza grande parte do enredo. A história de Chess é, desde logo, o grande mistério, e um dos segredos que mantêm a envolvência da leitura, quer por ser ela a razão essencial para o retiro em Tuckernuck, quer pelo contraste entre o seu silêncio obstinado e a expressividade da sua confissão. É também a mais rica em acontecimentos dramáticos - juntamente com a de India - o que evoca também uma certa empatia.
Mas nem só de Chess vive a história e, à medida que o enredo se expande, revelando mais sobre as outras personagens e criando situações capazes de mudar os rumos das suas vidas, também o ritmo da narrativa cresce de intensidade. As relações entre as quatro mulheres tornam-se mais claras, apesar das aparentes contradições, e é mais fácil compreender as suas escolhas e conflitos, resultado das características que têm em comum e das experiências e segredos que as separam. Há, também, um percurso de superação do passado - mais uma vez, principalmente para Chess e India, mas também para Birdie, em menor grau - que torna as personagens mais próximas. É, aliás, esta estranha forma de crescimento - de aceitação do sucedido e de (re)descoberta da felicidade possível - o aspecto mais cativante desta história.
Escrito de forma envolvente, com uma história que cresce aos poucos, mas que cativa pela forma como desenvolve o crescimento das suas personagens, este é, acima de tudo, um livro sobre as tragédias pessoais e o caminho para a recuperação, uma história das coisas simples (e de como elas por vezes se complicam), contada com um toque de mistério e alguns momentos particularmente tocantes. Uma boa história, portanto, e uma leitura agradável.»
As Leituras do Corvo

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Crítica de Leitor: «Safira»

«Passou mais de um ano e meio desde que "Rubi", o primeiro livro desta trilogia, me chegou às mãos. Obviamente, assim que consegui, agarrei neste "Safira", que nem chegou a aterrar na minha pilha de leitura, e devorei-o!!!
Não foi fácil! Depois de tanto tempo os pormenores já não estavam presentes e foi difícil conseguir dar à história o sentido e a emoção com que tinha terminado o primeiro volume. É claro que assim que lhe apanhei o jeito, tudo o que me sobrou soube a pouco. A trama adensa-se, como seria de esperar, mas a maior confusão vai no coração da nossa heroína. O galante Gideon tem o dom de a deixar (assim como ao leitor) fora de si, sem noção daquilo em que deve acreditar. Muito do que ainda ninguém explica já se vai adivinhando e muitas das suspeitas despoletadas em "Rubi" ganham força neste segundo volume. É claro que o livro termina quando não deve ( aí, mais um ano e meio até ao desfecho... Não se faz...), com Gwen desfeita enquanto gritamos interiormente "Esperem! Não acabem já! Eu quero saber mais!!!"... Mas ninguém nos ouve.
Depois de terminar este segundo volume, mantenho a opinião que o primeiro volume me deixou: uma série deliciosa, refrescante na sua originalidade, muito mais abrangente em termos de público do que o que é apontado na sua caracterização. Delicioso! E para quando o "Esmeralda"?»
Páginas Desfolhadas



sexta-feira, 20 de julho de 2012

Brevemente

Crítica de Leitor: «Ninguém Quis Saber»

«Ninguém Quis Saber, da sueca Mari Jungstedt, é um excelente policial para ler nas férias, pois apesar de ter uma história bem montada e repleta de surpresas não é uma daquelas obras excessivamente complexas que exigem uma atenção redobrada e uma leitura em ambiente «controlado».


Um assassínio e um desaparecimento de duas pessoas que aparentemente nada teriam que as ligassem atormentam a pacata ilha de Gotland. Ainda para mais, sendo eles em parte auto-excluídos, os vínculos que mantêm com a sociedade são tão débeis que se torna difícil perceber onde se poderiam cruzar. A vítima mortal é o fotógrafo Henry Dahlström, que aparece morto depois de ter ganho uma fortuna nas corridas de cavalos. Dahlström é um alcoólico, que depois de ter sido um prometedor fotógrafo, passou a viver de biscates, essencialmente para alimentar o seu vício. Não é por isso de estranhar que o círculo de «amigos» seja no seu todo constituído por potenciais suspeitos, pois todos eles vivem num mundo de vícios e decadência.

Mais tarde desaparece Fanny, uma adolescente inevitavelmente complicada devido a viver com uma mãe completamente «destrambelhada» que a obriga a ser prematuramente adulta e madura. E isso tem o seu preço e deixa-a exposta aos «males» da sociedade.

Como em qualquer bom policial sueco, as chagas desta «perfeita» sociedade nórdica são implacavelmente expostas e denunciadas, pois além do alcoolismo, há a acrescentar os dramas familiares, as famílias disfuncionais, as vidas de fachada, a pedofilia, etc., seja em passagens directamente ligadas aos crimes, ou apenas ilustrativas do quadro geral.

Mari Jungstedt é mais poupada em palavras do que dita a tendência actual, o que é algo que até se saúda tendo em conta a proliferação de obras que se perdem na própria teia que tecem e acabam por dar mais importância aos floreados do que ao cerne da questão. Aqui não há gorduras a aparar, tudo é útil e essencial, mas não se pense por isso que é um thriller seco de carnes, está lá tudo o que é preciso. E o que é que é preciso? Um bom enredo, retorcido e surpreendente mas lógico, personagens bem construídas e humanamente viáveis, e uma boa contextualização social. Não traz nada de inovador ao género, mas também não estamos sempre à espera de novidades, certo? Sabe bem ler algo que siga (bem) as regras e não se perca em artificialidades e trivialidades. O que aqui se lê nestas 240 páginas é necessário e útil.

Por isso, aconselho a que sigam atentamente a investigação de Anders Knutas que será, ele próprio, surpreendido com o desenrolar dos acontecimentos. Tal como os leitores.»
Rui Azeredo, Porta-Livros
 
 

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Crítica de Leitor: «A Estranha Viagem do Senhor Daldry»

«Durante um passeio com amigos, Alice é desafiada a consultar uma quiromante. Não é que Alice acredite nessas coisas, mas as palavras da vidente, com as suas indicações aparentemente impossíveis e a indicação de uma viagem a lugares distantes para encontrar o homem que mais importa na sua vida, acabam por se entranhar nos seus pensamentos, como se relacionadas com os pesadelos que lhe atormentam as noites. Assim, Alice vê-se dividida entre a sensação de que algo falta na sua vida e um lado racional que lhe diz que está a dar atenção a coisas irrelevantes. Mas o seu convívio com o vizinho, o estranho e um pouco amargo senhor Daldry, acaba por lhe dar os meios para seguir as pistas deixadas pela vidente. E a busca começa, tanto pelo homem da vida de Alice, como de novas ideias para o seu trabalho, como ainda de respostas para um passado bem diferente do que Alice julga conhecer. E uma das respostas que procura pode estar bem mais perto do que ela julga...


Construída de forma simples e com vários momentos enternecedores, este é um livro que surpreende pela forma como conjuga uma escrita directa, mas envolvente e com um lado emocional bastante cativante, com uma história que mistura um conjunto bastante inesperado de elementos, sem perder de vista a relevância das coisas simples. Esta é a história de uma viagem e, portanto, são necessários alguns desenvolvimentos a nível do local de destino, mas o autor desenvolve-os na medida em que são relevantes para a história, fazendo incidir sobre Daldry e Alice o protagonismo que lhes é devido. Alice parte com três objectivos diferentes, mas a sua busca de respostas para elementos tão distintos nunca coloca um aspecto acima dos outros. Há descrições interessantes da investigação de Alice junto dos perfumistas. As revelações do passado de Alice surgem de forma gradual, mas sem que este perca a relevância ao longo do enredo. (Este aspecto, aliás, culmina numa revelação particularmente enternecedora). E a busca pelo homem da vida de Alice equilibra, nas medidas certas, os sinais de uma relação que cresce gradualmente com os passos de uma procura que nunca se sobrepõe em demasia aos outros objectivos.

Não é difícil prever a conclusão para o lado romântico desta história, mas a forma como o autor a desenvolve faz com que esta continue a ser cativante, mesmo quando já é possível adivinhar parte das respostas para as perguntas de Alice. Além disso, a relação entre os dois viajantes e destes com as pessoas que encontram proporciona também momentos bastante interessantes, apresentando também personagens mais secundárias, mas com um papel importante a desempenhar e alguns momentos divertidos a que dar origem.

Esta é, pois, a história de uma demanda por várias respostas, uma história que, apesar de conjugar os diferentes elementos de uma busca complicada e os inevitáveis fardos do passado dos protagonistas, nunca perde a tocante simplicidade que a torna tão cativante. É uma história simples, no fundo, feita mais de pequenos momentos que propriamente das grandes surpresas. Mas é provavelmente essa simplicidade reconfortante, baseada na esperança de que talvez, apenas talvez, as respostas existam e conduzam a um final feliz, que torna tão enternecedora esta estranha viagem. Gostei.»
As Leituras do Corvo
 

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Crítica de Leitor: «As Coisas Que Te Caem dos Olhos»

«A capa de um livro faz muito pelo seu sucesso. Neste "As Coisas Que Te Caem dos Olhos", a capa é mais do que um mero veículo de mercado, é um espelho do livro em si. Gabriele Picco escreve como quem pinta. O livro é, todo ele, composto por quadros de letras e pequenas gravuras que, em cada capítulo, imprimem no leitor um determinado estado de espírito, uma sensação ou uma emoção. Ler este livro foi como fazer uma viagem por um mundo alternativo, em que as coisas mais simples são iluminadas por uma luz diferente...


"Gardone recorda quando, aninhada num ovo, descobriu o quão frágeis eram as paredes do mundo que se despedaçavam com o bico, e que depois, como que por magia, davam a descobrir um outro mundo. E talvez ninguém saiba, mas as gaivotas como ela voam esperando encontrar um dia o calcanhar-de-aquiles do céu, o ponto exato em que, apenas com a força do bico, tudo se despedaçará de novo."

Delicioso.
Fantástica é, também, a habilidade com que o autor integra todas estas lindas imagens numa história com um fio condutor lógico.
Enternecedor, provocante e refrescante, este será um livro a considerar nas escolhas para este Verão!»
Páginas Desfolhadas



quinta-feira, 5 de julho de 2012

Crítica de Leitor: «Ninguém Quis Saber»

«Ninguém Quis Saber caracteriza todos os invisíveis carentes de atenção com os quais no cruzamos diariamente, dos quais só nos lembramos quando já demasiado tarde. Diversas vidas díspares que, aparentemente, nada têm comum, abrem-nos as portas para um policial que aborda questões sociais muito diversificadas sem que, em momento algum, se perca como tema central uma minuciosa investigação.


Pedofilia, alcoolismo e diferentes tipos de dramas conjugais e familiares complementam-se e dão vida a um quadro criminal perfeito que não se priva de proporcionar ao leitor reviravoltas intensas e as respostas mais impensáveis.

Com personagens bem caracterizadas, cada uma delas abordando uma temática especifica que se interliga num todo, esta leitura facilmente agradará a qualquer leitor de policial e não só, devido às suas características peculiares, actuais, que representam o universo social no qual estamos incluídos mas do qual, automaticamente, nos excluímos. Fala-nos de uma jovem com problemas na escola e que sabemos não se conseguir incluir no seu meio porque Ninguém Quis Saber, Fanny. Fala-nos do vizinho que tem problemas com a bebida e que vos faz mudar de passeio quando cambaleia na nossa direcção e que acabará tristemente porque Ninguém Quis Saber, Henry. Mas, felizmente, ainda que seja no fim da linha, existe a esperança e a perseverança daqueles que se esforçam até às últimas instancias para descobrir o que realmente aconteceu relembrando-nos de um lado mais cru da vida, Anders.

Mari Jungstedt tem uma escrita perfeccionista, assertiva, que cuida proporcionar todas as peças do puzzle para que também o leitor se sinta incluído no desvendar do mistério exposto. As suas palavras não são ricas em sentimentalismos, ainda que exista um lado emocional que joga muito bem com os acontecimentos cadenciadamente abordados do crime, o que prende a atenção do leitor. A introdução rápida de factos, juntamente com algumas passagens no passado, são também factores que corroboram para manter a atracção, algo que persiste até ao final que, embora seja brusco, satisfaz plenamente quem lê com o factor surpresa utilizado no seu melhor o que, numa perspectiva pessoal, é essencial para um bom policial. Uma aposta acertada para os amantes do género, não tenho dúvidas.

Pessoalmente, eu tenho de confessar que não leio muitos policiais ainda que seja um tipo de leitura que me agrada e, como é caso, quando têm qualidade é realmente uma fonte de prazer. Desta feita, é complicado para mim tecer comparações, ou mesmo qualificar, ainda assim, na minha opinião, penso que este livro tem tudo o que é necessário para agradar a começar pelas personagens pouco aprofundadas mas suficientemente descritas para compreensão total dos desenvolvimentos, passando pela abordagem de questões interessantes e concluindo no desenlace admirável que se espera em qualquer história que envolva o crime e a lei. Por distracção, só após terminada a leitura é que cheguei a conclusão que este livro tem um antecedente que deveria ter lido e que tem também uma continuação com algumas personagens em comum, no entanto o facto de eu ter disfrutado plenamente da narrativa sem este conhecimento só lhe comprova ainda mais valor. Gostei muito.
Este pequeno livro é uma aposta Contraponto que já nos habituou a policiais de qualidade, entre eles encontra-se Ninguém Viu, da mesma autora. Uma leitura que sugiro, como não poderia deixar de ser depois de tudo o que foi dito, aos leitores de policial e thriller
Histórias de Elphaba
 

terça-feira, 3 de julho de 2012

Novidades para as férias

Espreite aqui as novidades fresquinhas que a Contraponto lança este verão.

terça-feira, 19 de junho de 2012

Crítica de Leitor: «Ninguém Quis Saber»

«Poucos dias depois de ter ganho uma soma considerável nas corridas de cavalos, o fotógrafo Henry Dahlström é encontrado morto na câmara escura onde continuava a trabalhar. Com um historial de alcoolismo e, em consequência, com um grupo de companheiros pouco recomendável, a primeira suspeita é a de que a sua morte tenha resultado de uma tentativa de roubo que correu mal. Mas as pistas que vão surgindo parecem descartar essa hipótese e a investigação de Anders Knutas torna-se ainda mais complicada com o desaparecimento de uma jovem que trabalhava no estábulo onde decorreram as corridas.

Escrita de forma directa e sem grandes elaborações, esta é uma história que, apesar de revelar o suficiente das vítimas e um pouco da personalidade do assassino, se centra principalmente nos passos da investigação. É a investigação de Knutas e da sua equipa o foco de grande parte do enredo e, como tal, são os passos deles o elemento central da narrativa. As suspeitas que se revelam erradas, os impasses de quando tudo parece apontar para um beco sem saída e a necessidade de recomeçar quando uma teoria se revela errada fazem parte do percurso da investigação e é nestes aspectos que se encontra o maior desenvolvimento, sempre de forma directa, com os factos como elemento dominante, mas com a medida certa de mistério a manter a curiosidade em saber mais.
E, se o mistério da morte de Dahlström basta para despertar o interesse do leitor, as coisas tornam-se ainda mais interessantes com o desenvolvimento da história de Fanny, a rapariga desaparecida. Ao apresentar parte dos seus passos antes do desenvolvimento, a autora cria proximidade com uma vítima que, porque mais inocente, desperta mais facilmente a empatia do leitor que no caso de Dahlström. Além disso, ao enigma das relações que talvez existam entre ambos os casos, junta-se ainda uma discreta história complementar que diz respeito ao jornalista Johan Berg e a uma relação amorosa que parece destinada a levantar problemas. Todos estes elementos fazem com que, apesar da relativa brevidade do enredo, que deixa por vezes a sensação de que mais haveria a dizer, haja bastantes elementos de interesse ao longo da história, bem como alguns momentos particularmente intensos.
Importa ainda referir a sensação de uma certa distância, que surge nas fases mais dedicadas aos pormenores da investigação, mas que se desvanece com o evoluir da história e com o adensar do enredo no que diz respeito a Fanny, abrindo caminho para um final intenso e que, ainda que um pouco brusco, surpreende pela revelação inesperada.
Um caso interessante, uma escrita cativante e alguns desenvolvimentos curiosos acerca de personagens sobre as quais haverá, certamente, mais a dizer, são o que faz deste livro uma história que, apesar da relativa brevidade e de algumas perguntas deixadas sem resposta, nunca deixa de ser envolvente e interessante. Uma boa leitura.»
As Leituras do Corvo



terça-feira, 12 de junho de 2012

Crítica de Leitor: «Sangue Quente»

«Confesso que estava um pouco céptica em relação em relação a "Sangue Quente", pois este novo conceito do uso de zombies como personagens românticas, ou com algum tipo de objectivo que não a retratação de um ser assustador e ameaçador, era algo quase que impensável para mim... Pois como iriam "romantizar" seres cadavéricos sem o calor dos lobisomens, ou o charme dos vampiros?

Isaac Marion leva-nos para um mundo destruído e divido entre Mortos e Vivos, que se encontram em guerra pela sobrevivência das respectivas espécies.
Um mundo em que a devastação é corriqueira, onde os Vivos se isolam em fortificações, sobrevivendo com dificuldades, enquanto que os Mortos (leia-se zombies e os seus guias, Ossudos) se encontram no exterior, caçando sempre que têm fome, e provocando mais medo e infestação.
Em "Sangue Quente", os zombies são exactamente como os conhecemos: criaturas cadavéricas, com o mínimo de inteligência, sem qualquer memória das suas vidas antes da infecção, com andares cambaleantes e que têm como dieta a carne humana.
R, o protagonista do livro, e a partir deste momento, o meu zombie favorito, tal como os outros da sua condição, não sabe quem é, de onde veio, ou o que fazia, mas, ao contrário dos seus iguais, manteve a sua inteligência intocável, embora a dicção fosse um grande problema.
Numa das caçadas do seu grupo, R conhece Julie, após matar o seu namorado Perry, e é aí que tudo muda para estas três personagens.
Perry morre, mas continua vivo dentro de R, ajudando o zombie na descoberta do seu novo "eu", na sua mudança para alguém que sente, que vive, que ama. Desenvolve-se uma relação de cumplicidade e inevitabilidade entre Perry e R, que comove o leitor, mantendo-nos agarrados a estes dois, esperando que lhes seja feita justiça, com um final digno de ambos, coisa na qual Isaac Marion não falhou!
R entra subitamente na dita mudança, com a ajuda de Perry e Julie, que com o seu afecto e esperança, provoca em R sensações que ele jamais pensou voltar um dia a sentir.
R é uma personagem extremamente culta e promissora, muito bem estruturada e como narrador, não poderia ser melhor! Um grande aplauso ao autor, que conseguiu manter uma narrativa interessante pelos olhos de um zombie, algo de que me teria rido com incredulidade até ler "Sangue Quente".
Por fim, temos Julie, uma jovem atraente de 19 anos que perde o seu namorado numa missão, onde conhece R, que a salva e a acolhe em sua casa.
Julie foi a personagem com que menos me identifiquei, devido à sua inconsistência... ora muito madura, ora demasiado infantil para os seus sofridos 19 anos.
Quanto à leitura, fora difícil nas primeiras 80 páginas, pois por mais interessante e culto que R fosse, a sua mente continuava estagnada como seria de esperar de um zombie, reflectindo-se na acção, tornando-a um pouco enfadonha e difícil de digerir.
Mas, após esse período, R muda, e a acção dá uma volta de 360º que me manteve agarrada até ao final. Agora, R e Julie têm nas mãos o poder de tentar mudar o mundo!
A leitura torna-se fácil, rápida e fluída, com muita acção e violência, erradicando-me do pensamento qualquer réstia de ideia pré-concebida que estava perante outro livro de adolescentes. "Sangue Quente" é um romance, mas para mentes maduras, devido aos conteúdos explícitos e violentes que nele figuram. Não me interpretem mal, são esses conteúdos que me fazem gostar do livro, mas para leitores susceptíveis ou de idades menores, talvez não seja indicado explorarem esta obra.
"Sangue Quente" foi uma grande surpresa, pela positiva. A Contraponto está de parabéns, pelo seu trabalho na tradução, assim como por não ter medo em arriscar!
Agora é esperar por Agosto, e rezar para que o filme esteja ao nível do livro!»
Joana Nunes, Segredo dos Livros

Crítica de imprensa: «Eu Sou Deus»

«Quando alguém se julga acima da lei dos homens

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Giorgio Faleti é um mestre dos mistérios policiais. Italiano, leva-nos para Nova Iorque para seguirmos o rasto de um assassino que julga ser Deus.

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O que é que pode acontecer quando alguém julga que está acima das leis dos homens e que tem o poder para impor os seus desejos? Ou seja, que é Deus. Quando, ainda por cima, se cruza isso com o mundo do policial, o resultado pode ser muito estimulante. E é isso que acontece com "Eu Sou Deus", de Giorgio Faletti, mestre perfeito da arte de trocar as voltas ao leitor. O título, só por isso, confronta-nos com a dimensão do que temos para ler.
Afinal, pode alguém que acredita que é Deus ser culpado de alguma coisa? E pode, não sendo Deus, ser condenado por pecados que acredita que não cometeu? É para esse pântano moral, onde se afundam as melhores intenções, que os leitores são atirados. Giorgio Faletti apresenta-nos um labirinto policial perfeito para nos perdermos.
Nestas páginas mágicas, seguimos a investigação da detective Vivien Light que, após uma pessoa ser encontrada dentro das paredes de um prédio em demolição, entra em acção. Mas rapidamente outro caso, a explosão de um prédio em demolição, entra em acção. Mas rapidamente outro caso, a explosão de um prédio que causa inúmeros mortos, a chama. Nada parece unir os dois casos? Nada? Bem, aqui nada é o que parece. O atentado parece um acto terrorista que ninguém reivindica. Quem será o responsável? Junto de Vivien Light está Russel Wade, jornalista fracassado que fornece a pista inicial para a investigação.
No início julgamos conhecer o assassino. Mas há enigmas que se sucedem durante o livro e, por isso, as nossas certezas vão caindo, como se fossem castelos de cartas. Temos um caso policial pela frente. Mas o livro remete-nos sobretudo para o mundo do pecado e da possível redenção. Quando o misterioso criminoso se vira para o padre McKean e lhe diz: "Não estou à espera da absolvição, porque não preciso dela. E, de qualquer maneira, sei que não ma daria", todas as cartas surgem trocadas. O criminoso não sente estar a pecar. Mas sente que precisa de confessar o que faz. Quando diz: "Eu Sou Deus" ele quer dizer-nos que está na fronteira entre os vivos e os mortos. Mas o criminoso é uma personagem que só mais tarde conheceremos realmente.
Ele é também um símbolo na luta tenaz entre a luz e as trevas. A luz é representada pela detective Vivien Light. Como detective, ela quer ser a claridade que ilumina o mundo sombrio do terrorista assassin que ataca Nova Iorque. Mas também se quer iluminar interiormente. A sua busca por iluminar a escuridão é também uma forma de percebermos por que é que num mundo em que a culpa é sempre do outro às vezes não sabemos como reagir quando não sabemos quem culpar. "Eu Sou Deus" é também um livro sobre as feridas nunca cicatrizadas da guerra. São do Vietname, como poderiam ser do Iraque ou do Afeganistão. Ou dos Balcãs. "As guerras acabam. O ódio dura para sempre", diz-se a certo momento neste livro. Sendo um policial, este é também um livro sobre os danos colaterais da guerra. Giorgio Faletti quer falar-nos da estupidez das guerras. Que vai deixando pessoas marcadas a ferro em brasa e que transforma heróis em inimigos do seu próprio país. O Vietname é ainda hoje um símbolo para diferentes gerações. Por isso está aqui. É esse monstro sem rosto que carrega todas as culpas da sociedade que encontramos aqui na forma de um terrorista. Temos pistas sobre ele. E, por isso, no meio da escuridão tem de surgir Vivien Light, para incidir a luz sobre todas as coisas que nem outra personagem central no livro, um jornalista fracassado de nome Russel Wade, consegue explicar.»
Fernando Sobral, Jornal de Negócios

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Crítica: «Persépolis»

«Mais de uma década depois da publicação original, em francês, chega às livrarias portuguesas uma daquelas obras que só não está no cânone das leituras essenciais porque não se trata de prosa, mas sim de banda desenhada. Na primeira pessoa, Persépolis conta a história de Marjane desde o momento em que a revolução iraniana cede lugar ao regime dos ayatollahs, em 1979-80, até ao momento em que a narradora decide sair do Irão e instalar-se, definitivamente, em França. Não se trata de um percurso linear, ou de um registo filtrado dos vários momentos de mudança do regime iraniano, mas antes de uma sucessão de pequenos episódios que compõem uma autobiografia ficcionada, muito marcada pelas descobertas, pelas dúvidas e pelos dilemas individuais de Marjane, não só em relação ao que se passa no Irão, mas igualmente perante tudo o que muda diariamente, sobretudo no seu processo de crescimento e no modo como se relaciona com os outros. E os outros, nesta história, tanto podem ser os pais que não a deixam participar nas manifestações por ser demasiado pequena, como as professoras que esperam dela uma obediência cega ou as amigas que anseiam por um marido. Os outros são os europeus que não conseguem vê-la sem um filtro de exotismo ou um alerta de terrorismo, mas são igualmente os seus compatriotas quando a crêem demasiado ocidentalizada, sem vontade de um casamento de conveniência ou de seguir a vida reservada às mulheres na Teerão da sharia.

A obra que consagrou Satrapi (e que teve adaptação cinematográfica em 2007) estrutura-se num registo gráfico onde se cruzam os momentos biográficos dos primeiros anos com as inevitáveis intrusões fantasiosas (como as conversas com Deus, em vinhetas que o representam com assumidas parecenças com Marx, ou as imagens das torturas políticas, demasiado duras, mesmo no imaginário de uma criança). Nas pranchas onde os factos históricos são fulcrais para o edifício narrativo, Satrapi recorre a representações esquemáticas da história do Irão que emanam da iconografia artística da Pérsia, assim incorporada no preto-e-branco das pranchas. Mas ao longo de todo o livro, o que define a narrativa é a auto-representação, da infância de todas as descobertas à primeira estadia europeia de Marjane (em Viena, na fase mais decisiva da adolescência), do início da guerra Irão-Iraque à decisão de trocar Teerão por Paris. Mais do que uma graphic novel de pendor histórico, Persépolis é um monumental registo da memória, consciente do passado, mas mais consciente ainda da inevitabilidade de o ficcionar.»
Sara Figueiredo Costa, Cadeirão Voltaire


segunda-feira, 4 de junho de 2012

Novidades do mês

Espreite aqui as novidades da Contraponto para começar bem o verão!

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Crítica de Leitor: «Eu Sou Deus»


«A cidade de Nova Iorque volta a viver um verdadeiro pesadelo. Edifícios aleatórios estão a ser demolidos através de estranhas explosões, o que coloca em risco qualquer pessoa em qualquer lugar. Vivien Light, uma jovem e destemida detetive com uma história familiar repleta de sofrimento, é encarregada de descobrir a identidade do serial killer e assassino de massas. Sem esperar, Vivien vê-se obrigada a partilhar a investigação com Russel Wade, um jovem repórter fotográfico que foi obrigado a devolver um prémio Pulitzer e que acredita ver a sua salvação na resolução deste mistério.

Depois de a Contraponto ter apresentado o autor aos leitores portugueses com Eu Mato (ler crítica), a editora volta a apostar em Faletti, com um novo e surpreendente policial.
Com uma trama bem conseguida, o leitor só vai querer largar o livro quando tudo estiver desvendado. É que se no início o autor dá indicações da identidade do vilão da narrativa, a verdade é que tal revela ser um belo truque que distrai atenções. Faletti leva a acreditar que deu todas as pistas necessárias para a descoberta da verdade por escondidas pelos crimes, mas, nas últimas páginas, o jogo é virado ao contrário e surpreende.
Mas se Eu Sou Deus possui acontecimentos deliciosos, tais acabam por perder alguma da sua força devido às personagens. Vivien Light e Russel Wade são interessantes, mas apenas enquanto analisados separadamente. Vivien é a imagem da mulher que sentiu necessidade de construir uma carreira sólida para ser valorizada, enquanto Russel é o homem inconformado por não conseguir preencher um vazio que a vida lhe deixou. Ambos têm histórias impressionantes, mas a relação que construem não convence. O leitor percebe que não era necessário existirem desenvolvimentos tão rápidos nesta relação.
Mas a verdade é que o ponto fulcral é a ação e esta vai com certeza agradar. A escrita é fácil de acompanhar e bastante simples, o que leva o leitor a perceber tudo o que lhe é transmitido, mesmo conceitos mais técnicos.
Destaco ainda o facto de o autor demonstrar preocupação em explicar o que leva as suas personagens a cometerem atos tão cruéis. A história fica, sem dúvida mais rica, e poderá gerar sentimentos de compaixão por quem pratica a crueldade para com o outro.
Giorgio Faletti, que esteve recentemente em Portugal para lançar esta mesma obra no Instituto Italiano de Cultura de Lisboa, volta a provar que é um homem de muitos talentos, e de que a escrita é, sem dúvida, um deles.
Cláudia Sérgio, do blogue Bela Lugosi Is Dead


segunda-feira, 14 de maio de 2012

Imprensa: «Persépolis»

«Viagens e regressos

Mais do que uma fábula moderna sobre o Irão, Persépolis é uma obra sobre desencontros, com a violência em pano de fundo e a memória a servir de luz

Doze anos depois da edição do primeiro volume de Persépolis pela L’Association, a obra de Marjane Satrapi já integrou o imaginário colectivo de muitos ocidentais e sobretudo o imaginário que muitos ocidentais construíram do Irão. Não será despropositado colocá-la na companhia dos filmes de Abbas Kiarostami e Jafar Panahi: também a sua representação de um país se construiu à margem da propaganda dos poderes políticos e das imagens difundidas pelos mass media. Os paralelismos podiam terminar aqui. Persépolis é banda desenhada (pese embora a adaptação cinematográfica realizada em 2007) e, com a chancela da Contraponto, conhece agora, em versão integral, a sua primeira edição portuguesa. Pede, portanto, um leitor, tipos de fruição específicos, respirações entre o folhear, pausas. O livro narra a vida de Satrapi entre a década de 1980 e o ano de 1994: da sua infância em Teerão até à adolescência na Áustria e, de novo, na capital iraniana. E constrói-se, até pelo intervalo temporal que o determinou (foi iniciado em 1999, no estúdio Atelier des Vosges, em Paris), enquanto revisitação de uma família, de uma sociedade e de um país, a partir de uma memória individual. “Podemos perdoar, mas não devemos nunca esquecer”, escreve Satrapi na introdução.
E Satrapi não esquece; não esquece as vítimas da violência política, do fanatismo, da guerra. Inscreve-as nas suas vinhetas: o tio Anoosh, que será executado pela polícia política de Khomeini (p. 78), amigos da família torturados e desaparecidos, os jovens mártires da guerra Irão-Iraque. Ou ela própria, na condição de exilada. História e autobiografia, discurso público e privado, Irão e Ocidente convergem na criação de uma narrativa feita de partidas e regressos. Na primeira parte, A História de Uma Infância, acompanhamos o dia-a-dia “traumático” de uma criança. Dos adultos, a pequena Satrapi ouve relatos da violência da ditadura do Xá e da República Islâmica: tortura, prisões, massacres que mostra aos leitores. É talvez o momento visualmente mais ousado de Persépolis. Como representar, muitos anos depois (em plena idade adulta), a morte e os mortos segundo a consciência e a imaginação de uma criança que já não existe? Os recursos estilísticos usados por Satrapi (que chegou à banda desenhada após o encontro com Maus, de Art Spiegelman) protegem a ousadia sem sacrificar a complexidade: desenho minimal (quase infantil), limitação da perspectiva a pequenas passagens, domínio do preto e branco, com as suas sombras e silhuetas (a autora admite a influência de Nosferatu, de Murnau), mas sem tonalidades ou texturas. Só uma vez Satrapi interrompe este registo, quando é testemunha directa do horror da guerra: sob as ruínas de uma casa pousa o corpo de uma jovem vizinha que ela nunca chega desenhar, mas sabemos que viu (p. 150).
É entre mortos e vivos, momentos de alegria e de luto, festa e medo que constrói Persépolis; oposições que, mais de uma vez, partilham a mesma prancha. Na página 110, por exemplo, jovens soldados rebentam sobre as minas iraquianas; logo abaixo, noutra vinheta, vemos Satrapi a dançar numa festa com amigos. Uns e outros são corpos que partilham, finalmente, o mesmo lugar: o da memória.
Satrapi assume de onde vem: de uma família secular, liberal e letrada, de simpatias marxistas. Estuda no liceu francês de Teerão, tem sentimentos de culpa devido à sua privilegiada condição económica e facilmente se incompatibiliza com o fundamentalismo islâmico (enfrenta-o, engana-o). O seu olhar não tem tempo para “desenhar” soldados ou guardas como os de Offside, de Panahi: em Persépolis são, fundamentalmente, avatares de uma opressão.
É esta Marjane Satrapi que no segundo capitulo, A História de Um Regresso, chega à Áustria para estudar num colégio de freiras, com o apoio financeiro da família. No entanto, a primeira experiência europeia salda-se num fracasso. Agradam-lhe a liberdade de movimentos, o convívio com os outros, a música punk e até o haxixe. Em contrapartida, não compreende a promiscuidade sexual, reprova o desrespeito pelos mais velhos (que descreve quase sempre com simpatia) e critica a crescente desconfiança face ao outro (muçulmano, iraniano, de tez escura). As conclusões desta “etnografia” (que lembra a ensaiada por Jean Rouch em Petit à Petit) ensombram o (frustrante) desenlace amoroso e a consequente crise de identidade. Regressa ao Irão, mas um casamento falhado, as ruínas e o sufoco das tradições são-lhe insuportáveis e aceita o exilio final na Europa (Paris). Por isso, mais do que um livro sobre o Irão, Persépolis é um livro sobre as tensões entre a sociedade e a família e as escolhas a que os indivíduos são forçados perante a repressão: exílio, emigração, aculturação, desenraizamento. O que explica o seu apelo poético e político, 12 anos depois.»
José Marmeleiro, Ípsilon, Público

Destaque: «Persépolis»


Uma apreciação muito bem-vinda do autor J. Rentes de Carvalho. Aqui.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Imprensa: «Persépolis»

«Viagens e regressos

Mais do que uma fábula moderna sobre o Irão, Persépolis é uma obra sobre desencontros, com a violência em pano de fundo e a memória a servir de luz.
José Marmeleira

Doze anos depois da edição do primeiro volume de Persépolis pela L’Association, a obra de Marjane Satrapi já integrou o imaginário colectivo de muitos ocidentais e sobretudo o imaginário que muitos ocidentais construíram do Irão. Não será despropositado colocá-la na companhia dos filmes de Abbas Kiarostami e Jafar Panahi: também a sua representação de um país se construiu à margem da propaganda dos poderes políticos e das imagens difundidas pelos mass media.
Os paralelismos podiam terminar aqui. Persépolis é banda desenhada (pese embora a adaptação cinematográfica realizada em 2007) e, com a chancela da Contraponto, conhece agora, em versão integral, a sua primeira edição portuguesa. Pede, portanto, um leitor, tipos de fruição específicos, respirações tem sentimentos de culpa devido à sua privilegiada condição económica e facilmente se incompatibiliza com o fundamentalismo islâmico (enfrenta-o, engana-o). O seu olhar não tem tempo para “desenhar” soldados ou guardas como os de Offside, de Panahi: em Persépolis são, fundamentalmente, avatares de uma opressão.
É esta Marjane Satrapi que no segundo capitulo, A História de Um Regresso, chega à Áustria para estudar num colégio de freiras, com o apoio financeiro da família.
No entanto, a primeira experiência europeia salda-se num fracasso. Agradam-lhe a liberdade de movimentos, o convívio com os outros, a música punk e até o haxixe. Em contrapartida, não compreende a promiscuidade sexual, reprova o desrespeito pelos mais velhos (que descreve quase sempre com simpatia) e critica a crescente desconfiança face ao outro (muçulmano, iraniano, de tez escura). As conclusões desta “etnografia” (que lembra a ensaiada por Jean Rouch em Petit à Petit) ensombram o (frustrante) desenlace amoroso e a consequente crise de identidade.
Regressa ao Irão, mas um casamento falhado, as ruínas e o sufoco das tradições são-lhe insuportáveis e aceita o exilio final na Europa (Paris). Por isso, mais do que um livro sobre o Irão, Persépolis é um livro sobre as tensões entre a sociedade e a família e as escolhas a que os indivíduos são forçados perante a repressão: exílio, emigração, aculturação, desenraizamento. O que explica o seu apelo poético e político, 12 anos depois.»
Ípsilon, Público

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Persépolis no TOP


Persépolis teve uma estreia em grande nas livrarias e já está no TOP Bertrand num fantástico 5º lugar!

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Conspiração 365

Crítica de Leitor de «Conspiração 365 - Dezembro» para ler aqui: http://conspiracao365.blogspot.pt/2012/04/critica-de-leitor-dezembro.html

E mais imagens da série de TV que tem estado a passar na televisão australiana e que infelizmente ainda não chegou a Portugal.


terça-feira, 10 de abril de 2012

Richelle Mead lançou app no iTunes

A autora da série Academia de Vampiros lançou recentemente um app na loja do iTunes para iPhone, iPad e iPod Touch.

Ver aqui como funciona:

Crítica de Leitor: «Não Sou Um Serial Killer»

«Aos quinze anos, John Wayne Cleaver está convencido de que está destinado a ser um serial killer. E as circunstâncias a favor da sua teoria são várias: como se não bastasse ter o nome de um serial killer e de uma arma, John parece ser incapaz de criar empatia com qualquer pessoa ou até mesmo de sentir qualquer emoção. Mas, destino ou não, John não quer seguir esse caminho e, para se impedir de fazer algo de irreversível, criou um conjunto de regras que têm vindo a gerir a sua vida. O problema é que, no momento em que a tranquilidade de Clayton é abalada pela descoberta de um corpo mutilado... ao qual se seguirá outro... e outro mais, John descobre que só ele, com a sua capacidade de pensar como um serial killer e de analisar a situação de formas que nem passariam pela cabeça das pessoas "normais", poderá fazer com que as mortes deixem de se suceder. E, ante um adversário difícil de compreender, é possível que várias regras tenham de ser quebradas para o parar.


É de uma forma quase descontraída que o protagonista nos conta os aspectos mais perturbadores do seu estranho mundo. Narrado na primeira pessoa e com uma escrita directa e envolvente, Não Sou um Serial Killer conjuga elementos de mistério e de macabro com um tom leve e que surpreende por alguns laivos de humor e uma visão bastante curiosa do que define um sociopata - aos olhos do próprio. É, pois, a estranha personalidade de John, que, com as suas peculiaridades, que primeiro chama a atenção deste livro, sendo particularmente curioso que um protagonista tão invulgar como John - o rapaz que se julga um futuro serial killer - acabe por surgir como um quase herói para a narrativa.

John é, portanto, um protagonista interessante, mas nem só dele vive a história. Se os meandros da mente de John na sua luta contra o que parece ser a natureza proporcionam, por si só, momentos de grande intensidade, há ainda assim um outro grande elemento a definir o rumo dos acontecimentos e esse é o suposto serial killer que está a deixar vítimas por Clayton. Aqui, sobressai a forma como o autor constrói o mistério, passando depois para uma revelação que é apenas o início, já que, ao incluir elementos de inexplicável, a história passa a dizer respeito menos aos passos da investigação e mais à descoberta de uma maneira de deter o assassino.

Ao confrontar John com um adversário em que o comum habitante de Clayton jamais poderia acreditar, cria-se também um interessante contraste entre os possíveis distúrbios na mente de um sociopata e uma "entidade" que, sem que a sua natureza seja amplamente explicada, se define também pela acção motivada pela necessidade, ainda que de um tipo diferente.

Com uma história cheia de surpresas, um conjunto de personagens interessantes e uma abordagem bastante inesperada ao mundo do crime, Não Sou um Serial Killer surpreende tanto pelo tom quase descontraído com que o autor desenvolve um tema bastante negro como pela forma como o protagonista é moldado pela situação em que acaba por se envolver. Surpreendente, de leitura compulsiva... e muito bom.»
As Leituras do Corvo

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Elogios que não acabam!

O livro «Persépolis» que saiu na semana passada já tem grande atenção mediática e os elogios não são poucos!

«Além da expressividade das suas pranchas a preto e branco, o que torna irresistível a arte narrativa de Satrapi é a forma como a vida da autora nos surge de forma realista e verosímil, umas vezes grandiosa, quase sempre banal, conseguindo-se através dela, vislumbrar os grandes movimentos e contradições da sociedade iraniana, muito mais complexa do que sugerem quase todos os discursos ocidentais sobre a antiga Pérsia.»
José Mário Silva, Atual, Expresso

«O melhor romance gráfico de sempre.»
Filipa Melo, Sol


«Uma memória gráfica brilhante e invulgar, contada num tom franco e cativante, que ilustra de forma dramática a maneira como os regimes repressivos deformam a vida dos cidadãos.»
Vogue



terça-feira, 3 de abril de 2012

Abril, livros mil!

Com a chegada da primavera, e depois de um período de seca, a chuva começou finalmente a cair, primeiro tímida, depois um bocadinho mais forte, um pouco como as lágrimas de um inverno desgostoso. A Contraponto lança em abril um livro que também fala de lágrimas, uma fábula encantadora que não irá resistir a ler. Veja aqui as pequenas grandes novidades para este mês!

Crítica de Leitor: «Sangue Quente»


«Um livro espantoso, escrito na primeira pessoa por um zombie bastante complexo e diferente de todos os outros que o rodeiam.
Surpreendente a forma como o autor abordou este tema "zombies": R é um zombie incrível, cheio de sentimentos complexos, desejos e uma vontade enorme de "viver".
Não estava mesmo à espera desta abordagem ao tema. Sem dúvida interessante, no mínimo.»
Segredo dos Livros

quarta-feira, 14 de março de 2012

Crítica de Leitor: «Não Sou Um Serial Killer»

«Dentro dele, vive um monstro. Por trás de uma fortaleza, escondido pelo exterior normal dele, um monstro quer-se soltar, quer ser livre, e está sedento de sangue. Uma criatura que não tem medo de gerar o medo, uma criatura que se alimenta do olhar assustado de outrem, e que deseja o que não pode ter. Mas o mal não se fica por aqui, e mesmo ao virar da esquina reside um demónio que somente pode ser quebrado pela força de um verdadeiro monstro. O que irá ele fazer?


Não Sou Um Serial Killer trata-se de um livro fascinante na medida em que o leitor se sente automaticamente cativado por uma personagem complexa e de autonomia extrema. Incapaz de estabelecer ligações emocionais, John Wayne Cleaver é o protagonista que os adolescentes vão adorar, e a personalidade que os adultos não vão conseguir esquecer. Muito próximo de um Dexter em ponto pequeno, este rapaz de quinze anos retratará o bem e o mal, o certo e o errado, na perspectiva única de alguém que sofre de sociopatia.

Dan Wells desenvolve assim uma ideia que tanto tem de prometedor como de cativante, excepcionalmente bem estruturada e com um leque de intervenientes sólido, interessante e, no mínimo, peculiar. Dotado de um estilo de escrita maduro, inteligente e singular, tenho a certeza de que este autor cuja potencialidade é extraordinária, continuará a primar os seus leitores com obras apelativas e recheadas de pequenos pormenores deliciosos. É que, para quem não sabe, Não Sou Um Serial Killer tem continuação...

John Wayne Cleaver sabe que não é um jovem como os outros. Tal não se sucede por trabalhar numa casa mortuária onde embalsama cadáveres, nem por fazer parte de uma família claramente disfuncional. Não. John Wayne Cleaver tem consciência da sua particularidade enquanto ser humano pelo simples facto de não se conseguir ligar a ninguém, nem mesmo à sua mãe. Para além disso, é obcecado pelo psicológico dos assassinos em série, partilha o nome com um serial killer, e não consegue evitar pensar em matar alguém de mil e uma formas diferentes quando essa pessoa o chateia. Por isso mesmo estabeleceu regras muito específicas para a sua existência, regras com as quais tem de viver, tem de cumprir e não pode prescindir, de modo a manter-se são e «normal», mas isso não será por muito tempo...

O Monstro é uma figura que tanto tem de assustador como de curiosidade. Adormecida, encurralada, esta é uma personagem que cria uma certa ambiência de dúvida e inquietação ao longo da trama, deixando o leitor constantemente à beira do suspense e do abismo, à espera do momento em que tudo mudará ao ponto de já não haver retorno.

O Demónio é alguém mutável e diferente na sua compleição. Alguém que aparece quando menos se julga, alguém cuja necessidade primária de subsistência o impede de se continuar a camuflar, a esconder e a viver com normalidade. Um indivíduo intelectual e cuidadoso, que não se impedirá de espalhar o terror e a morte. Uma personagem que continuamente deixará o leitor com pele de galinha ao mesmo tempo que se unirá a ele de forma intensa e inquebrável, acabando por suscitar uma certa empatia e compaixão.

Num enredo que se desenvolve com naturalidade e consistência, John Wayne Cleaver é, certamente, a sua alma grandiosa. Para mim, uma personagem que tanto se adora como rapidamente se odeia, que não deixa de impor respeito e de espalhar um pouco de medo. Que tanto me fez rir perante uma faceta irónica e brincalhona mas cujas piadas se cingiam a temas decididamente nada divertidos, como me deixou numa situação delicada onde o receio, a possível dor e sofreguidão de uma inconstância de emoções e sentimentos me fez ansiar novamente por segurança. Um protagonista extremamente racional e inteligente, que não só esboça perfiz incrivelmente adultos e psicológicos de pessoas comuns – ou que, por algum acaso, lhe suscitaram atenção – como, ao mesmo tempo, se deixa levar pela juventude que possui, pelas paixonetas que não entende, pelas amizades de que necessita, pelo hábito que entrou na sua vida e pelo trabalho que não consegue largar. Sem dúvida, alguém que poderia ser o nosso vizinho do lado, ou o irmão de um amigo. É que estas pessoas ditas «especiais», que se encontram constantemente à beira do precipício são, acima de tudo, iguais a nós, nem que seja no aspecto físico. E isso sim é o que mais assusta.

Esta foi, surpreendentemente, uma leitura sôfrega e ávida. Não Sou Um Serial Killer é o tipo de livro que, uma vez folheada a primeira página, não mais se consegue largar até se alcançar o final e descobrir como foi que tudo aconteceu e como terminou. Até ao último instante, e este é outro dos seus aspectos positivos, tudo está em aberto, passível de inúmeras surpresas e reviravoltas.

O estilo de Wells é, decididamente, outro dos encantos deste livro já que optou pela personificação na primeira pessoa de uma personagem que se expõe no papel, que deixa os seus pensamentos fluir, os seus receios, as suas necessidades e a melhor forma de as contornar ou satisfazer. Para mim, uma narrativa que vale a pena, principalmente pelo seu protagonista.

O único aspecto que me deixou ligeiramente de pé atrás foi a componente sobrenatural que Wells incorporou na sua trama deveras realista. Embora não estivesse à espera, e uma vez que essa informação estava lá, gostaria de ter ficado a saber um pouco mais sobre como isso aconteceu e porquê. É que estando rodeada de tanta «verdade», foi estranho encontrar algo tão místico. Mas ficarei a aguardar pela continuação, com a esperança de que algumas das minhas dúvidas e incertezas sejam preenchidas.

Em última instância, Não Sou Um Serial Killer é, claramente, um livro que recomendo pela sua diferença e singularidade. De leitura rápida e leve, esta foi uma muito agradável surpresa da Contraponto, que uma vez mais soube como marcar o seu ritmo e preferência. Gostei... e recomendo!»
Pedacinho Literário